Poeta, tradutora, ensaísta, jornalista e professora, Ana Cristina César (1952-1983) é uma daquelas poetas que, de tempos em tempos, desponta no meio do cenário literário e é alçada a um patamar meio enigmático, meio mítico. Com uma poética consciente e crítica de seu exercício, tensionou a lei do grupo por meio de uma dramatização, no poema, de fronteiras borradas entre vida e obra, de certo self-fashioning que encenava uma fidelidade aos acontecimentos biográficos e que jogava com uma intimidade escrita com luvas – de pelica.


Como tradutora, Ana Cristina César traduziu, entre outros, A. J. Greimas, Sylvia Plath, Emily Dickinson e Katherine Mansfield, autora cujo conto “Bliss”, de 1918, foi traduzido e analisado por Ana em sua dissertação na Universidade de Essex, no Reino Unido.
Em 1976, alguns poemas de Ana Cristina César foram incluídos por Heloísa Buarque de Hollanda na obra 26 poetas hoje, importante antologia da poesia marginal e de poetas, sobretudo cariocas, representantes desse movimento. Três anos depois, Ana Cristina César lança Cenas de abril, em edição artesanal, de certo modo próximo à prática da edição em mimeógrafo, que serviu de alcunha para a geração marginal. O poema de abertura, “recuperação da adolescência”, trazia, em síntese, uma afirmação:
é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço
Apesar dessa associação entre Ana e a poesia marginal, uma leitura menos reducionista de seus poemas acaba apontando, na verdade, uma espécie de adesão parcial ao programa estético marginal (ou a ausência de um programa estético, como salienta Glauco Mattoso em seu conhecido livro O que é poesia marginal). O modo como certas questões formais (como o resgate da proposta do verso livre modernista, sobretudo a vertente oswaldiana), e questões temáticas (como a valorização do coloquialismo e do cotidiano como resposta ao intelectualismo da vanguarda concreta e do rigor formal da poesia cabralina, ou o engajamento político – ou o seu desbunde – frente à realidade social e política) acabam delimitando especificidades na poética de Ana Cristina César que produzem desvios e distanciamentos em relação ao que se entende, comumente, como poesia marginal.
Muitos dos escritos de Ana Cristina César eram guardados em um pasta sanfonada dividida pela poeta em sete seções que ficou conhecida como pasta rosa. Como um espaço de organização dos projetos, textos e poemas, a pasta rosa funcionou como um work in progress armazenado, no qual o processo criativo de Ana Cristina César – sua bruta aventura em versos – estava visceralmente exposto: revisões, rasuras, reelaborações, reduções, cortes, deslocamentos, percursos de inacabamento ou de abandono se evidenciavam entre manuscritos, textos datilografados e desenhos feitos em papéis de diferentes tipos e procedências.




Em 29 de outubro de 1983, aos 31 anos, Ana Cristina César se suicidou, atirando-se da janela do sétimo andar do prédio onde seus pais moravam. Quarenta minutos antes desse ato, Ana recebia um telefonema do poeta e amigo Armando Freitas Filho. O suicídio foi, simbolicamente, o selo posto sobre a sua vida de poeta, a qual, somada à sua poesia, transformaram a figura de Ana Cristina César em um tipo de mito. Por outro lado, também trouxe uma implicatura negativa à sua obra, sendo estabelecido como uma chave de leitura para ela, fato que, de modo muito limitante, orientou críticos e leitores a recepcionar a sua poesia como os escritos de uma suicida em potencial que, pouco a pouco, vai revelando seus intuitos. Em 2016, Ana Cristina César foi a poeta homenageada da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty.
Para a série Língua de Partida, trazemos três poemas de Ana Cristina César presentes em seu único livro publicado em vida por uma editora, A teus pés (1982). A tradução é da premiada poeta e tradutora Brenda Hillman (EUA, 1951). Junto com Helen Hillman e Sebastião Edson Macedo, Brenda é uma das tradutoras da obra At your feet, edição bilíngue do livro de Ana Cristina César.
O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não largam!
Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço aqui no
campo declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja, não
sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.
A storm closes in.
I’m faithful to the biographical facts.
More than faithful, oh, so trapped! These mosquitoes that won’t let up!
My longings deafened by cicadas! What am I doing here in the countryside reciting long, sensitive metrical verses? Ah it’s because I’m sensitive and Portuguese, and now I’m not anymore, look, I’m not
severe and harsh anymore: now I’m professional.
Atrás dos olhos das meninas sérias
Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com fissura da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o primeiro sidecar anfíbio nos classificados de aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para o Lagos, Seven year itch, mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.
Behind the Eyes of Serious Girls
Warning: I’m turning into a jet plane. Gypsy of adultery’s primetime. Protestant separatist. Basque flapper with a craving for truth. Understand me if you please: my frankness was my flaw, the first amphibious sidecar in the rental classifieds. On the side of the engine rode an armored angel, Charlie’s Angel full speed ahead to Lagos, Seven Year Itch, up the creek without a paddle. I jump out (but does my heel snag on part of the pedal?), I’m no longer drowning, I don’t wag my tail or shake my hips without fuel for takeoff. I don’t look back. I warn and prophecy with my crystal ball that sees real soap operas and my golden blue cloak heavier than air. I don’t look back so get out of my way ’cause this one’s swooping in: sharp talons, and long legs.
Samba-canção
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…
Samba Song
So many poems I’ve lost.
So many I’ve heard, for free,
on the phone – see,
I did everything for you to love me,
I was a vulgar woman,
half-witch, half-beast,
little modernist laughter
scratching at the throat,
hustler, faggot,
total dyke, vandal,
maybe Machiavellian,
then one day I got fed up,
I curtsied
(it was a strategy),
I made deals, greedy,
though kind of stupid,
because being smart left me
blushing, or the opposite, pale
face that doesn’t know
its own rosiness,
and I made so many, maybe
hoping for glory, another
scene in the spotlight,
maybe just your caress,
but so many, I made so many…
Abaixo, um trecho do documentário Bruta aventura em versos (2011, 75min), dirigido por Letícia Simões (BA, 1988), no qual Ana Cristina César realiza a leitura do poema “Samba-canção”:

Ana Cristina César. Poética. Companhia das Letras, 2013. 503p.
Ana Cristina César. Inéditos e dispersos. Organização e introdução de Armando Freitas Filho.Editora Brasiliense, 1985. 208p.
Ana Cristina César. At Your Feet. Translated from the Portuguese by Brenda Hillman, Helen Hillman and Sebastião Edson Macedo. Edited by Katrina Dodson. Parlor Press, 2018. 114p.