Janus e a Besta: a relação entre Austin Spare e Aleister Crowley, por Thiago Tamosauskas

Considerados por muitos como os maiores ocultistas ingleses da história, Crowley e Spare tiveram seus caminhos cruzados no início do século XX. A especulação sobre a amizade dos dois é inevitável entre estudiosos do assunto, mas pouco se diz sobre os possíveis pontos de contato entre suas linhas de pensamento.
26/12/2024
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Aleister Crowley conheceu Austin Osman Spare em 1907, em uma importante exposição feita na Galeria Bruton, no West End de Londres, quando tinham 32 e 21 anos, respectivamente. Pouco depois, Crowley convidou Spare a participar da sua ordem iniciática, Astrum Argentum (A∴A∴), e ele aceitou, fazendo seu Juramento de Probacionista sob o nome mágico Yihoveaum (“Eu sou a eternidade”). Ao contrário de Crowley na Golden Dawn, Spare não tinha pressa em acumular graus ou escalar hierarquicamente na ordem e permaneceu como probacionista (um dos primeiros graus da ordem) até seu desligamento em 1910. Ao avaliá-lo, Crowley gravou em seu juramento: “É um artista, não entende de organização, ou teria passado” — mas talvez tenha sido a organização que não entendeu o artista.

Os dois se afastaram e, ao que tudo indica, nasceu uma hostilidade recíproca que ambos levariam até a morte — ou quase. Há vários rumores sobre o que exatamente teria acontecido entre eles, além de alguns relatos de amigos próximos, mas, para além disso, também nos interessa aqui jogar alguma luz sobre certas características e semelhanças dos sistemas mágicos que cada um desenvolveu, que apontam para uma provável influência mútua.

Antes de analisarmos alguns aspectos e passagens de suas obras, porém, é importante destacar que, quando se conheceram, Crowley já havia dado ao mundo O livro da Lei, a partir do qual a thelema se desenvolveu, e Spare já havia escrito e desenhado Terra Inferno, que apresenta seus primeiros conceitos. Ambos os livros foram concebidos em 1904. Todavia, os conceitos apresentados pelos ocultistas nessas obras ainda não estavam tão bem definidos quanto viriam a ser depois na edição de O livro da Lei comentada pelo autor (1912) e em O livro do prazer (1913), de Spare.

Atratores estranhos

Os matemáticos da teoria do caos chamam de atratores estranhos os padrões de comportamento de um sistema dinâmico que surgem independentemente do ponto de partida. Da mesma forma, existem similaridades e correlações entre os sistemas mágicos desenvolvidos por Crowley e Spare. Algumas delas estão presentes em três conceitos-chave de cada um:

Nuit e Kia: ambos os conceitos podem ser relacionados, em certa medida, ao Tao da filosofia chinesa – o saber direto e intuitivo que não pode ser descrito em palavras. Nuit é “o círculo infinitamente vasto cuja circunferência é incomensurável e cujo centro está em toda parte” (LL). E Kia, segundo Spare, é “a Liberdade Absoluta, que, justamente por ser livre, é vasta o suficiente para abarcar a ‘realidade’” (LP, p. 209).[1]

Had e Zos: são a contraparte de Nuit e Kia, semelhantes ao conceito de Teh, que os taoístas usam para designar a manifestação do Tao no mundo. Had é a manifestação individual de Nuit: “Cada Indivíduo manifesta o Todo; e o Todo oculta cada Indivíduo. A Alma interpreta o Universo; e o Universo vela a Alma” (LL). Zos, embora não seja manifestação imediata de Kia, é o humano – corpo e mente considerados de forma integrada –, e sua manifestação mais pura advém da união com Kia.

Verdadeira Vontade e Amor-de-si: ambos os conceitos se referem a um princípio norteador que surgiria da tomada de consciência de uma pessoa sobre seu verdadeiro ser e, por consequência, sobre seu objetivo primal. Ambos conferem ao ego uma associação ou religação universal com sua natureza divina.

Existem muitos outros pontos correlatos entre os dois autores. Por exemplo, em O livro da Lei, Crowley afirma que “a palavra de Pecado é Restrição” (I:41), e na abertura de O livro do prazer, Spare define vício como medo, crença e controle – entre outras características (p. 209). Do mesmo modo que só peca quem não é livre, pois o que caracteriza o pecado é uma coação que visa o controle, sair dessa estrutura é tão complicado quanto se livrar de um vício. Compare ainda as seguintes passagens:

“Deixai aquele estado de multiplicidade limitado e repugnante. Então com teu todo; tu não tens direito senão fazer a tua vontade.
Faze isso, e nenhum outro deverá dizer não.” (Crowley, LL, I:42-43)

“A ‘verdade’ não pode ser dividida. Somente o amor-de-si não pode ser negado […] por si só é verdade, completo, sem nenhum acessório.” (Spare, LP, p. 213)

ou

“Pois vontade pura, aliviada de objetivo, livre do desejo de resultado, é de todo modo perfeita.” (Crowley, LL, I:44)

“Em verdade apenas eu sou ‘si-mesmo’, e minha vontade, incondicionada, é mágica.” (Spare, LP, p. 242)

ou

“Esta é a criação do mundo, que a dor de divisão é como nada, e a alegria da dissolução tudo.” (Crowley, LL, I:30)

“A Morte é tudo” (Spare, Terra Inferno, p. 574)

ou ainda

“São estes tolos que os homens adoram; seus Deuses & seus homens são ambos tolos.” (Crowley, LL, I:11)

“Tolos, vossa recompensa não está
‘nem aqui nem depois’.” (Spare, TI, p. 562)

Vemos que, tanto para Crowley quanto para Spare, o “amor-de-si”, que aqui relacionamos com a “Verdadeira Vontade”, é algo que está “fora” da lei dual da realidade, que se manifesta na multiplicidade. Amor-de-si e Verdadeira Vontade são íntegros, indivisíveis, e é a única realidade que não pode ser negada – afinal, como pergunta Spare no começo do LP, “existe algo em que acreditar, a não ser o si-mesmo?  Os dois magistas atribuem à morte e à dissolução o contato com o todo — ou seja, a própria realidade, em última instância, seria uma ficção construída por nós (considerados como Had ou Zos), e só podemos ter contato com a Unidade a partir da morte de tudo que é dualidade.

Uma imagem de Terra Inferno (p. 562-563) em particular chama atenção por lembrar, em vários pontos, a lógica da fórmula IOA – uma fórmula mágica de aplicação pessoal que usa as imagens de Ísis, Osíris e Hórus.

Spare descreve a mulher nua no centro da imagem como “a figura do Prazer” (que poderíamos relacionar com Ísis). Ao lado dela está o “Sacerdote Agnóstico (a ressuscitar dos mortos)” (Osíris) que encoraja e acautela o leitor dizendo “toma dela o que quiser. Mas terás que pagar o preço” no “abrupto despertar da cegueira”. Esse despertar, que Crowley chamou de Aeon de Hórus – o deus criança vingador –, é aqui representado pelo “Saber Bufão [que] expõe a Morte” e pelo “Espelho da Verdade [que] nada revela exceto a Evolução”.

Vale lembrar que Terra Inferno foi escrito no mesmo ano que O livro da Lei, em continentes separados, por pessoas que ainda não se conheciam. Se ambos são resultado do zeitgeist pós-nietzschiano ou se acessaram inteligências “praeter-humanas” que ensinavam a mesma coisa é uma interpretação que deixaremos a cargo do leitor.

Entre outros atratores estranhos nas duas obras, destacam-se a ressacralização da figura feminina, o uso de técnicas de yoga para alcançar estados não-duais de consciência, o gosto pela blasfêmia, a ressignificação do prazer e a importância das técnicas mágicas relacionadas à sexualidade, para citar alguns exemplos. A principal diferença é que Crowley fez isso com uma abordagem erudita — “o método da ciência” —, regada a cabala e astrologia devido às influências da Ordem Hermética da Golden Dawn, enquanto Spare seguiu uma via mais atávica e xamânica, provavelmente devido à influência bruxesca da sra. Paterson.

Tensão sexual no Aeon de Hórus

Quando Spare entrou para a A∴A∴, esta ainda era uma ordem pequena (ele foi seu sétimo membro), e podemos facilmente presumir que havia maior proximidade entre os iniciados. Spare produziu ilustrações para o manual de geomancia de Crowley (o Liber Gaias), publicado na segunda edição do The Equinox, por volta de 1909, e nesse período Crowley geralmente se referia a Spare com carinho em seu diário. Há rumores não comprovados de que eles tenham sido amantes, ou que pelo menos tenha havido certa iniciativa por parte da Grande Besta. Um dos biógrafos de Spare, Phil Baker, autor de Austin Osman Spare: The Life and Legend of London’s Lost Artist (Strange Attractor Press, 2011), sugere que três poemas de Crowley publicados em The Winged Beetle (“O besouro alado”) eram sobre essa possível relação: “The Twins” (“Os gêmeos”), que Crowley dedica explicitamente a Spare e no qual Crowley compararia a si mesmo e Spare aos deuses incestuosos Hórus e Set; “The Priestess of Panormita” (“A sacerdotisa de Panormita”); e “The Garden of Janus” (“O jardim de Janus”), em uma referência a um dos apelidos de Spare. Como o artista teria recusado tais homenagens, Crowley em seguida dedicou “The Garden of Janus” a Victor B. Neuburg.

Para Keith Richmond, autor de Austin Osman Spare: Artist, Occultist, Sensualist (The Beskin Press, 1999), esses três poemas fornecem pistas para o conhecido desentendimento entre os dois, que resultou na saída de Spare da A∴A∴ em 1910. Só sabemos ao certo que Crowley se sentia atraído pelo jovem e belo artista e claramente tentou seduzi-lo, em parte por sua própria atração sexual, em parte por acreditar que tal união teria um forte impacto no desenvolvimento de ambos e da própria ordem. Se ele conseguiu ou não seduzi-lo é irrelevante. Tenha tido sucesso ou não, é após essa época que vemos se estabelecer a hostilidade entre os dois. É bastante interessante notar como essa tensão sexual – energia tão importante no sistema mágico de ambos – pode ter desempenhado um papel significativo no término da amizade.

Daí em diante Crowley passou a se referir a Spare como um mero imitador, e este passou a tratar aquele como uma fraude. Algumas das críticas mais ácidas escritas em O livro do prazer contra os magistas e sua “obesidade desnecessária de símbolos” parecem ter sido dirigidas a Crowley:

Outros enaltecem a magia cerimonial e supostamente experimentam muito êxtase! Nossos manicômios estão superlotados, o palco foi invadido e está abarrotado! É simbolizando que nos tornamos o simbolizado? Se eu me coroasse rei, seria eu um rei? Prefiro ser objeto de aversão e pena. Esses magistas, cuja insinceridade é sua segurança, não passam de dândis desempregados dos bordéis. […] Seus métodos dependem do lamaçal da imaginação e de condições caóticas, seu conhecimento é adquirido com menos decência do que a de uma hiena em busca de alimento. São menos livres, e a satisfação que obtêm não se compara à dos mais desprezíveis dos animais. Condenados por si mesmos à sua gordura repulsiva, esvaziados de poder, não possuem sequer a magia do charme ou da beleza pessoais – são ofensivos em seu mau gosto e barganham por propaganda. (p. 213)

Crowley chegou a comprar e ler uma edição de O livro do prazer, o que por si só demonstra uma espécie de respeito velado por seu antigo pupilo. Em seu exemplar, escreveu seu próprio veredito, atualmente parte da coleção do Biblioteca Estadual de New South Wales (Austrália):

Imitação das obras de Aleister Crowley, Kwang-Tze e outros adeptos. Suas palavras e pensamentos são deturpados e distorcidos. Spare era na época aluno de Fra. P., mas foi retido devido a sua tendência à magia obscura — o que se vê no decorrer do livro. Os críticos notarão a ignorância dos significados das palavras, por exemplo, “obsession incarnating”. Também encontramos frases sem verbos e bobagens refinadas como “neither-neither”, roubadas do “never-never” de J. M. Barrie.

Crowley não aceitava a escrita automática, e Spare tinha repulsa pelo ocultismo exagerado de seu antigo instrutor. Farpas trocadas, os dois se afastaram, e em seguida começou a Primeira Guerra Mundial. Crowley mudou-se para a Sicília, onde construiu sua Abadia de Thelema, e Spare foi enviado a Blackpool, noroeste da Inglaterra, onde serviu no Corpo Médico do Exército Real. Apenas muito tempo depois, em 1922, os dois se reencontraram, quando Crowley retornou a Londres e buscou contatar todos os conhecidos que pudessem ajudar em suas empreitadas editoriais. Spare era na época coeditor de um periódico de artes chamado Form: A Quarterly of the Arts, mas não pôde ajudá-lo, uma vez que o jornal foi encerrado naquele mesmo ano. Seja como for, Spare presenteou Crowley com uma edição de seu então recém-lançado e último livro, O foco da vida.

O que sabemos sobre a opinião final de um pelo outro fica a cargo de Kenneth Grant, amigo pessoal de Spare e secretário de Crowley. Segundo Grant diz em suas Trilogias Tifonianas, Crowley abrandou os ânimos e, com o avançar da idade, passou a se referir a Spare como um discípulo desregrado, um filho pródigo que nunca voltou. Em certas ocasiões, Spare também teria apontado Crowley como uma pessoa correta, generosa e agradável, mas em geral manteve a antipatia e a hostilidade em relação ao outro e evitava tocar no assunto. Mesmo assim, pintou dois retratos dele nesse período tardio. Crowley morreu em 1947, e Spare nove anos depois.

“Aleister Crowley from memory (as in 1910)” – retrato feito por Spare em 1953 (esq.) “Desenho a partir de fotografia” – retrato feito por Spare em 1936 (dir.)

Autoria

Thiago Tamosauskas

Thiago Tamosauskas é alquimista praticante e escritor, com foco em religião, filosofia e ocultismo, especialmente em alquimia. Autor de obras como "Principia Alchimica: O Manual Prático da Alquimia", "Psicotrópicon: Quimiognose Alquímica para Psiconautas Responsáveis e Ciranda do Tarot", voltada ao público juvenil. Além disso, é colaborador da iniciativa Morte Súbita Inc., do Projeto Mayhem e da Oficina Palimpsestus.