“On Trans”: poema de Miller Oberman traduzido por Rogério Bettoni

26/12/2024
5 min de leitura

O poeta, editor e professor norte-americano Miller Wolf Oberman, residente do Brooklyn, em Nova York, tem chamado atenção da cena literária desde que, em 2005, recebeu o prêmio Ruth Lilly Fellowship, Poetry Magazine. De lá pra cá, seus poemas começaram a ser publicados em diversas revistas literárias e acadêmicas, tornando-se uma referência na literatura contemporânea queer.

A questão trans mostra-se presente em praticamente toda a obra de Oberman. Seu doutorado em língua e literatura inglesa poderia muito bem ser visto como apenas um estudo do inglês antigo, mas não: em um seminário sobre identidades medievais, Oberman diz que sua paixão pelo inglês arcaico se deu na leitura de um poema antigo chamado “A ruína”, de autoria desconhecida, em que o interlocutor observa as ruínas de uma cidade sem acreditar em como algo tão incrível poderia ser destruído. Essa renovação, esse “além de”, o “trans”, é o que guia o trabalho de Oberman como trans-posição, trans-formação, trans-crição – tradução (trans-lation). Sua obra The Unstill Ones, ainda sem tradução para o português, é uma coleção de poemas autorais e traduções do inglês antigo, lançada em 2017 numa série de publicações de poetas contemporâneos feita pela Universidade de Princeton.

Confira a seguir a tradução do poema “On Trans”, um de seus mais conhecidos, que busca transgredir o caráter heteronormativo da linguagem, não por meio de uma fala neutra, mas de uma fala trans – ir além. A tradução é de Rogério Bettoni, tradutor e editor. Segundo ele, a beleza (e a dificuldade) do poema de Oberman já se mostra na primeira frase: o contínuo processo de atravessamento da linguagem para ir além com o intuito de constante trans-formação. Não há nada acabado no poema, mas lacunas; nada fechado, mas possível; nada estanque, mas em movimento. Tudo é trans.

TRADUÇÃO

On trans

O através é processo em continuação.

A terra parece parada, embora às vezes uma queda
nos provoque um lampejo de sua rotação.

Estávamos apenas prosseguindo. Eu apenas partindo,
o mesmo que dizer chegando
em toda parte. Transiente. Eu estava indo enquanto vinha, palavras
me passando pelos braços, pulmões,                boca, enquanto me recosto

em paz junto à sua lareira          transubstanciando um vinho qualquer.
Era de um rubro rascante,              uma daquelas noites em que não nos
obrigavam as circunstâncias                      a tomar vinho em canecas.
Sendo circunstâncias,      em casos assim, ninguém tinha se

transfixado na cozinha tempo suficiente      para lavar louça.
Levei braçadas de lenha          rachada a machado.
Muitas delas, porque fazia frio,      cobriram de imediato
suas ancestrais recentes.              A noite foi glacial.

Transpiravam a olhos vistos,            visco à fagulha,
casca à fumaça, madeira à cinza.        Eu estava
transgenerando e tomando     o rubro rascante mais ou menos
na mesma medida,           e quem olhava via.

A translucidez das chamas      pulsava pelo ar,
pela nossa pele.                          Pode acontecer com
ou sem roupas.              Pode acontecer com
ou sem vinho ou uísque        mas nunca sem água:

a evaporação também é continuação.      Mais visível nesse caso
na forma do fino vapor           exalando do cabelo recém-lavado
de uma forma junto à queima cuja beleza estava                  na terra
em rotação, naquela e em muitas noites,       transcendente.

Senti o calor me alterando.                    A palavra para isso é
transdesejar, mas em casos severos                dizemos transextremar
ou quando o calor nos toma como cria dizemos
transcausar, ou quando acontece            diante da lareira:

transqueimar.

ORIGINAL

On trans

The process of through is ongoing.

The earth doesn’t seem to move, but sometimes we fall
down against it and seem to briefly alight on its turning.

We were just going. I was just leaving,
        which is to say, coming
elsewhere. Transient. I was going as I came, the words
        move through my limbs, lungs,                 mouth, as I appear to sit

peacefully at your hearth              transubstantiating some wine.
        It was a rough red,                 it was one of those nights we were not
forced by circumstances                         to drink wine out of mugs.
Circumstances being,         in those cases, no one had been

transfixed at the kitchen sink long enough         to wash dishes.
        I brought armfuls of wood         from the splitting stump.
Many of them, because it was cold,         went right on top
        of their recent ancestors.                 It was an ice night.

They transpired visibly,            resin to spark,
        bark to smoke, wood to ash. I was
transgendering and drinking         the rough red at roughly
        the same rate         and everyone who looked, saw.

The translucence of flames         beat against the air
        against our skins.                         This can be done with
or without clothes on.                 This can be done with
        or without wine or whiskey         but never without water:

evaporation is also ongoing.         Most visibly in this case
        in the form of wisps of steam         rising from the just washed hair
of a form at the fire whose beauty was         in the earth’s
        turning, that night and many nights,         transcendent.

I felt heat changing me.                         The word for this is
        transdesire, but in extreme cases                 we call it transdire
or when this heat becomes your maker we say
        transire, or when it happens                 in front of a hearth:

transfire.

Confira o próprio Oberman fazendo uma leitura do poema:

Confira também a leitura da tradução feita pelo músico e ator Will Andrade.

Autoria

Rogério Bettoni

Rogério Bettoni (SatBhagat), editor-geral, organizador e tradutor
Rogério criou a Palimpsestus com a vontade de fazer a diferença. Filósofo de formação e especializado em tradução, trabalha no ramo há vinte anos. Traduz filosofia, crítica e literatura moderna e contemporânea —de Judith Butler a Slavoj Žižek, de Agatha Christie a Ernest Hemingway. Pela Palimpsestus, traduziu e publicou Austin Osman Spare, Phil Hine, Pamela Colman Smith e Alan Chapman. Recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional em 2017 na categoria de melhor tradução com o livro "Jaqueta Branca", de Herman Melville. Também faz parte do Projeto Xaoz e dá aulas de kundalini yoga.

Miller Oberman

Miller Oberman é poeta, editor e professor norte-americano, residente do Brooklyn, em Nova York. Em 2005, recebeu o prêmio Ruth Lilly Fellowship, da Poetry Magazine. Seus poemas, que abarcam a vivência trans e queer do autor, já foram publicados em diversas revistas literárias e acadêmicas, tornando-se uma referência na literatura contemporânea queer.