Pamela Colman Smith, ou como revelar a arte das mulheres

12/06/2023
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Em 1966, em uma de suas conferências, Simone de Beauvoir propôs um exercício mental à sua plateia: imaginar o que aconteceria com a irmã de Van Gogh se ela tivesse as mesmas paixões artísticas e criativas do irmão e tivesse enfrentado as mesmas dificuldades financeiras, o desestímulo da família, as mesmas atribulações e, ainda, a ausência de apoio artístico, financeiro e afetivo do irmão Theo —porque, segundo Beauvoir, uma irmã artista certamente não encontraria em Theo a mesma compreensão que foi essencial na vida de Van Gogh.

O exemplo de Beauvoir não era novo, e ela sabia disso —ela cita Virginia Woolf e a proposta de um exercício semelhante em Um teto todo seu, de 1929, imaginando o caso de uma irmã de Shakespeare. E a figura da irmã iria ainda se repetir outras vezes na literatura depois de Woolf e Beauvoir. No início da década de 1990, por exemplo, Susan Sontag recorreu a premissa semelhante em sua peça de teatro “Alice in Bed”. Com maior ou menor ênfase, sempre considerando o momento histórico de suas reflexões, as três autoras quiseram ressaltar os impactos das condicionantes de gênero no desenvolvimento das carreiras artísticas das mulheres. Woolf e Sontag especificamente na literatura, Beauvoir na literatura e nas artes visuais.

Ao traduzir a obra Pamela Colman Smith: artista, feminista e mística, foi sobretudo o texto de Beauvoir que ecoava em mim constantemente, a cada capítulo. O’Connor produz mais precisamente uma biografia intelectual e política de Colman Smith (1878-1951) do que uma “história de vida”. Seu texto é menos uma narrativa e mais uma cartografia dos lugares sociais pelos quais Colman Smith circulou, nos quais se estabeleceu, além de levantar diversos pontos de reflexão sobre as relações de poder atravessadas por gênero, classe e raça/etnia na época de nascimento do modernismo.

Colman Smith é, de fato, uma personagem histórica que propicia esse tipo de análise. Ela foi escritora, desenhista, poeta, cenógrafa, ilustradora, figurinista, pintora, editora, maquiadora, atriz, participou do movimento sufragista e, além de tudo isso, envolveu-se com a mística, desenvolvendo um interesse especial pela representação das relações de poder e suas expressões simbólicas —escolhas políticas, intelectuais e espirituais que ela sempre integrou às suas atividades profissionais. Foi, portanto e sobretudo, uma artista que encarnava a busca por novidade e a insubordinação às formas artísticas e aos papéis sociais tradicionais, fixos, que caracterizavam o modernismo. Como artista múltipla, para quem a arte era um meio de expressão, pesquisa, descoberta e integração de saberes, Colman Smith estava interessada em experimentações linguísticas, em manifestações culturais populares, na investigação de ideias e das possibilidades da mente.

Todos esses aspectos, plenamente legítimos e condizentes com a efervescência do campo intelectual e artístico de sua época, encontrou, entretanto, alguns entraves. É aí que a trajetória artística de Colman Smith se cruza com as ideias de Beauvoir, exemplificando todos os elementos que ela examinou em sua conferência (exceto, para o bem ou para o mal, que ela não teve um irmão a quem se comparar): dificuldades financeiras; a falta de incentivo familiar depois da morte da mãe e do pai quando ela era muito jovem; o não acolhimento da teia hegemônica e predominantemente masculina do campo artístico; a resistência de marchands, galerias e editoras; a diferença de valor atribuído às obras; a desconfiança do público e da crítica; a dificuldade de encontrar pares que incentivassem a autoconfiança artística. No caso de Colman Smith, há ainda dois elementos complicadores que Beauvoir não analisa: a não conformidade de gênero e a ambiguidade racial. Colman Smith poderia ser considerada uma mulher queer, de antecedentes raciais não definidos, e isso acarretou uma exacerbação dos preconceitos em relação a sua personalidade e sua obra.

Todos esses são aspectos concretos da experiência das mulheres nas artes, de acordo com Beauvoir, que expressam de forma evidente processos sociais mais complexos de ocultamento da produção criativa, material e simbólica das mulheres artistas: proibições, desprezo à capacidade de ação, não reconhecimento estético, isolamento e esvaziamento da subjetividade.

O elemento marcante da biografia escrita por Elizabeth Foley O’Connor —cuja profunda pesquisa em arquivos públicos, hemerotecas, acervos iconográficos públicos e coleções particulares fica evidente ao longo do texto— é a capacidade da autora de se embrenhar nesse emaranhado das relações sociais, trazendo fatos vivenciados por Colman Smith e registrados em trechos de cartas, artigos jornalísticos, livros, documentação pessoal em diários, livros de visitas, cadernos de esboços. E por meio dessas que poderiam ser chamadas de “provas materiais” do ocultamento artístico vivenciado por Colman Smith, O’Connor consegue também dar testemunho à capacidade de ação da artista.

Colman Smith soube se apropriar de suas ambiguidades, soube construir a própria identidade e a própria visão artística a partir das relações que desenvolveu, das oportunidades que se apresentaram e da construção cada vez mais complexa de sua visão mística de mundo. Ela fez isso estabelecendo uma rede de amizades, colaborações e parcerias criativas, que incluía personalidades como Ellen Terry, Bram Stoker, Edith Craig, Henry Irving, W. B. Yeats, Florence Farr, entre outras. Por meio de algumas pessoas dessa rede, Colman Smith pôde se reconhecer como “Pixie”, apelido que recebeu de Ellen Terry e que a permitiu reconhecer e expressar sua dissidência de gênero e sua ambiguidade racial. Foi também através dessa rede que conheceu Alfred Stieglitz e acabou por se tornar a primeira não-fotógrafa a expor pinturas na galeria 291, em Nova York. Também se encontrou com as sufragistas inglesas e, embora tenha sido cidadã estadunidense até a morte, Pamela colaborou com desenhos e charges de humor particularmente ácido para a longa campanha das mulheres pela conquista do direito de voto. Suas amizades e colaborações possibilitaram ainda a redescoberta de sua capacidade de expressar visualmente as experiências sinestésicas que tinha ao ouvir música clássica e se apropriar de uma forma de expressão artística muito particular.

Esse processo de autodescoberta, a criação de redes de apoio intelectual e artístico e as redescobertas místicas estão condensados em sua obra mais conhecida: as 78 cartas do baralho de tarô Smith-Waite. Cada traço, cada simbologia, cada cor, cada sombra dos desenhos das cartas —consideradas não só as mais populares do mundo como as de mais profunda comunicação com consulentes e especialistas na arte do início do século XX— foi concebido, projetado e imaginado por Colman Smith a partir das discussões e interpretações compartilhadas com seu parceiro no projeto, o ocultista Arthur Edward Waite. O baralho foi publicado por William Rider e, com isso, por muito tempo ficou conhecido como tarô Rider-Waite —ocultando Pamela Colman Smith da obra de que foi protagonista.

E é aqui que a análise de Beauvoir e a trajetória de Colman Smith se reencontram. Beauvoir —assim como Woolf, Sontag e inúmeras outras pensadoras— questionou o ocultamento das mulheres nas artes e na literatura. Esse é um tema central no campo de pesquisas feministas e de gênero que buscam investigar trajetórias, tensionar teoria e experiência vivida e apontar esse tipo de processo de ocultamento. Hoje o baralho de tarô criado por Colman Smith vem sendo chamado de Smith-Waite. Nomeação não é uma mera formalidade, como O’Connor e Colman Smith bem sabem. É o resultado de constantes esforços de contestação, pesquisa, imaginação de novas relações sociais. O livro escrito por Elizabeth O’Connor sobre Pamela Colman Smith sintetiza grande parte desses esforços.

 

Referências

BEAUVOIR, Simone de. La femme et la création. In: FRANCIS, Claude; GONTIER, Fernande. Les Écrits de Simone de Beauvoir. Paris: Gallimard, 1979, pp. 458-481.

SONTAG, Susan. Alice in Bed: A Play in Eight Scenes. New York: Farrar, Strauss & Giroux, 1993.

Heci Regina Candiani é tradutora e pesquisadora. Entre suas traduções, estão obras de Angela Davis, Ursula K. Le Guin, Octavia E. Butler, Silvia Federici e China Miéville. Dedica-se a pesquisas nos estudos feministas e de tradução e é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, tendo defendido a tese "A tessitura da situação: a trama das opressões na obra de Simone de Beauvoir".