Corações simples: lugares femininos na obra de Gustave Flaubert e Milton Hatoum
Apresentação por Raquel Camargo
Seria a literatura capaz de restituir aquilo que na vida nem sempre temos a sorte de conquistar? Falo aqui da centralidade dada a mulheres em espaços facilmente considerados subalternos na obra de Gustav Flaubert e Milton Hatoum. Se no primeiro nos referimos às domesticidades, no caso do escritor amazonense essa presença feminina atípica no seio das famílias – a chamada empregada doméstica – vem imbricada também a genealogias indígenas que falam além, sobre antepassados que dizem respeito a nós todos, aos diversos brasis. Mas nem tudo, para nossa sorte, é tão simples. Pois Flaubert nos mostra – às vezes sutilmente, às vezes de modo escancarado, para quem tem olhos de ver – conexões Europa-América do Sul que fazem das ascendências indígenas uma presença identificável também nos imaginários de seus contos e tramas.
No texto em questão, de Michel Riaudel com tradução minha, o autor realiza um breve e sagaz percurso por algumas das obras de Flaubert, bem como alguns dos romances de Hatoum, nos oferecendo um pouco de transparência sobre o trânsito Norte-Sul, sobre conexões que aproximam esses autores e sobre como a literatura, enquanto “regime de conhecimento”, nos levar a ouvir vozes por vezes inauditas no “regime da vida”.
Sigamos por partes. O texto passeia por um dos principais contos de Flaubert, bem como por seu mais conhecido romance e, na sequência, se atém a quatro romances de Milton Hatoum, que compartilham entre si imaginários nortistas bem como heranças indígenas.
Em Flaubert, encontramos Félicité, uma doméstica de Pont-L’Évêque, personagem de Um coração simples, um de seus três contos publicado em 1877. Essa personagem tem seu possível esboço – assim nos conta o texto de Riaudel – já em Madame Bovary, com Catherine-Nicaise-Élisabeth Leroux, criada que receberá um “prêmio irrisório” pelos anos a fio de serviço prestado em uma fazenda, sem entender nada do que se passa ao seu redor na cerimônia do prêmio. Afinidades entre essas duas personagens? De algum modo, ambas acreditaram e interiorizaram o lugar que lhes fora imposto: mulheres desengonçadas, totalmente desconectadas dos usos e costumes de sua sociedade, incapazes de compreender os ritos ao seu entorno.
Com sutileza, o presente ensaio vai nos levando não apenas a inverter as perspectivas – quem mesmo fala de quem? De onde olhamos? Quem define “inteligência” e “burrice”? –, mas nos permite deslocar igualmente nosso olhar: Félicité não é “nosso outro, mas efetivamente nosso semelhante”. “(…) ela compartilha conosco o mesmo espírito, sente, sofre e pensa como nós”. O nosso olhar sensível para Félicité, sua ética e seus afetos, é despertado pelo detalhamento no texto da relação entre Félicité e seu papagaio, Lulu, “pária como ela” e seu “avesso”, “desordenado, indiscreto”.
Papagaio esse que, tendo vindo já da Américas, faz um voo de volta à terra natal reaparecendo, por assim dizer, no primeiro romance de Milton Hatoum, Relato de um certo oriente, sob o nome de Laure.
E é também na obra do escritor manauara que podemos encontrar um pouco de Félicité, nos traços da doméstica ameríndia Domingas, no romance Dois irmãos. Embrenhada em uma família que não é a sua, mas tampouco se pode dizer que ela não é da família – lugar atípico e também muito típico que se conforma nas relações de domesticidade – Domingas tem um filho com um dos gêmeos de sua patroa. É por aí, como lembra Riaudel, por esse lugar periférico, esse lugar de dentro e de fora de filho ilegítimo, que veremos a trama narrada.
Por vias literárias, encontrando momentos de epifania no romance de Hatoum, Riaudel nos traz à cena uma Domingas revirada, nas fronteiras de seu passado e de sua história, com seus medos de não mais retornar ao presente, de perder-se de sua vida. Além da sensibilidade e maestria de iluminar em Dois irmãos suas brechas, seus interstícios que se abrem para o que poderia ter sido – o que faria Domingas se tivesse ido um pouco mais em sua viagem de barco? – o autor nos chama a atenção para um devir feminino do texto. Se um tema central de Dois Irmãos é o enigma do pai – qual é a identidade do pai de Nael, filho de Domingas? – o que Nael encontra em sua busca é sua identidade ameríndia, uma Amazônia profunda, o universo de sua mãe que precisou ser enterrado em vida.
O autor segue o itinerário na obra de Hatoum, passando por Cinzas do Norte e por Órfãos do Eldorado, tematizando o feminino, o lugar subalterno e deslocando categorias de pensamento e apreensão de mundo. Nesse processo, somos convocados a enxergar essas presenças femininas não por aquilo que nelas faltam, mas pelo que nos dizem, pelo modo como suas presenças, seus jeitos e formas de processar situações, dilemas de vida, inauguram novas e por vezes imprevistas, mas nem por isso menos engenhosas, sensibilidades.
Mas eis aqui o pulo do gato: por um mecanismo próprio que atua no ensaio, um estilo, modo de escrever, mas igualmente um pensamento que o subjaz, o texto não se propõe apenas a nos dizer coisas, ele tem o potencial de realizar algo; de promover aberturas para que o leitor siga, complete, mergulhe nos silêncios próprios ao texto e construa também sua leitura. Os espaços de incompletude convocam o leitor, promovem a abertura para que ele também se insira e preencha, a seu modo, o caminho tecido no texto, costurado na tradução e que segue, até onde fôlego houver, nas imaginações futuras…
Boa leitura!
Os corações simples: genealogias indígenas, de Gustave Flaubert a Milton Hatoum
por Michel Riaudel
Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho.
Michel Foucault1
Haveria um “estilo tardio” no personagem de Félicité? No sentido biográfico da expressão, sem dúvida. Em 1877, quando publica Um coração simples, o primeiro de seus Três contos, Flaubert tem 56 anos. Restam-lhe apenas três anos a serem vividos. Já é um escritor consagrado e não tem mais nada que provar a ninguém, a não ser a si mesmo. Mas a história dessa doméstica de Pont-L’Évêque corresponderia de fato ao que Edward Saïd, depois de Adorno, chama de “estilo tardio”, caracterizado por um imobilismo, uma resistência a toda influência de sua própria sociedade (Saïd, 2009, p. 49), ou ainda por “uma espécie de exílio autoimposto”? Cabe o questionamento, haja vista a fatura quase naturalista da narrativa.
Lembremo-nos que a empregada já tem o seu esboço, vinte anos antes, na célebre cena dos comícios agrícolas de Madame Bovary: “Uma velhinha de aspecto medroso foi então vista avançando em direção ao palanque; ela parecia encarquilhar-se em seus pobres trajes” (Flaubert, 2011, p. 313).
Essa criada vai receber um prêmio irrisório de vinte e cinco francos por “cinquenta e quatro anos de serviços na mesma fazenda”, sem entender nada do que lhe está acontecendo.
[…] interiormente espantada com as bandeiras, os tambores, os senhores de casaca e a cruz de honra do conselheiro, ela permanecia totalmente imóvel, não sabendo se era preciso avançar ou fugir, nem por que a multidão a empurrava e por que os examinadores sorriam-lhe. Era assim que se mantinha, diante daqueles burgueses alegres, meio século de servidão. (Flaubert, 2011, p. 314)
O desenvolvimento que Flaubert dá a seu personagem, em 1877, como uma espécie de complemento ou de alicerce invisível do episódio que acabamos de evocar, é, entretanto, o próprio sinal de sua inatualidade. Ele é de ontem como de hoje. É nosso contemporâneo, no sentido que Giorgio Agamben, depois de Barthes, confere à noção: “A contemporaneidade é […] uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (Agamben, 2010, p. 59).
Não levamos suficientemente a sério a vontade de Flaubert de recusar confrarias e rótulos: “faço de tudo para não ter uma escola!”, ele escreve à George Sand2, a quem também confidencia, algumas semanas depois: “abomino isso que se convencionou chamar de realismo, ainda que me tenham por um de seus pontífices”3 De fato, ele pouco se importa de ter escrito, como um jornalista, sobre a Prússia arrogante vitoriosa, sobre o refluxo do bonapartismo ou uma indecisa Terceira República; de nos ter deixado, de algum modo, a enésima “universal reportagem”, segundo a fórmula forjada uma dezena de anos mais tarde pelo Crise de verso de Mallarmé. Ele não se preocupa tanto com a crônica “natural e social” de uma família, quer ela viva em uma monarquia, quer viva em uma república ou qualquer que seja o regime. Ele se atém menos aos movimentos na superfície de sua época do que aos seus fenômenos mais profundos, à sua arqueologia. Assim como suas heroínas ordinárias, o autor e seu estilo operam como uma espécie de ruptura em relação a uma ideia qualquer de progresso.
A prova disso é essa espécie de imobilismo que vai de “Catherine-Nicaise-Élisabeth Leroux” à Félicité4. A primeira não tem um nome de fato, mas um estado civil, que tão logo proferido já é relegado a uma espécie de anonimato. A vida da segunda é subterrânea, quase clandestina. As duas são como as normandas, “indígenas” da França, estrangeiras aos ritos das pessoas como devem ser, acomodados. Alguns as chamarão de alienadas, qualificativo que ressoa como uma sentença de enclausuramento. São burras, para o público dos comícios agrícolas ou para a sra. Aubain. Lembremo-nos de Félicité já velha. Ela também serviu sua senhora por meio século. Tornou-se surda, fala “muito alto, mesmo na igreja” e tem zumbidos nos ouvidos. “Meu Deus! Como você é burra!”, ela escuta de sua patroa. E responde-lhe: “Sim, senhora” (Flaubert, 2019, p. 40).
Certamente, ela interiorizou seu lugar, sua posição social, que vai junto com uma compreensão do que é a “inteligência” e a “burrice”. Mas Um coração simples lhe restitui a dignidade; o conto nos revela um pouco de sua ética, de sua vida interior. Na verdade, para além de um tratamento respeitoso, ele nos permite entrar em um regime singular de conceito, de percepção e de afeto.
A metafísica ocidental baseia-se na ideia de que o mundo nos é comum, é por meio da alma e de sua orientação, o ponto de vista, as visões de mundo etc. que nós nos distinguimos. Uma antropologia perspectivista, a de Eduardo Viveiros de Castro e de outros, introduz-nos a uma outra ontologia, ameríndia, segundo a qual a alma é comum a todos os seres, o que difere é o mundo que cada um vê.
De fato, se Félicité é um ser deslocado, ao menos ela compartilha conosco o mesmo espírito, sente, sofre e pensa como nós. Assim como nós, ela tem sua moral, sua fé, suas crenças, sua filosofia. Por essa razão ela não é nosso outro, mas efetivamente nosso semelhante. Isso não nos impede, contudo, de apreendê-la como uma “anacrônica”, o que se pode tentar compreender de duas maneiras.
A primeira, ao modo mais ou menos marxista (senão pós-marxista) de um Walter Benjamin. É possível, então, ver nessa pobre criada a imagem, uma dentre tantas, da “servidão anônima”, que seria a condição de existência dos “bens culturais” de uma época: “não há testemunho de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um testemunho de barbárie”. Assim, contar a vida de Félicité seria como “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 2000, p. 433), fazer do “estado de exceção” uma regra de nosso mundo, o que Benjamin chama de “a tradição dos oprimidos”, em outras palavras, a história dos vencidos.
A segunda maneira, de ordem antropológica, é constatando que não sentimos, não sofremos e não pensamos exatamente pelas mesmas razões. Nossos modos de decidir sobre o que deve e o que não deve ser, sobre o sentido das coisas, sobre a verdade, nosso estatuto do conhecimento, nossas ferramentas mentais, tão distanciadas, dizem-nos que somos semelhantes e não vivemos no mesmo mundo. É por isso que as pessoas ao redor de Félicité não a compreendem: ela é tomada por uma simplória, uma louca, quando muito uma iluminada. Ela permaneceria inacessível não fosse a mediação de um escritor, ao fim das contas um pouco xamã e um pouco antropólogo ao mesmo tempo. Em algum momento Anne-Christine Taylor definiu sua disciplina, a antropologia, pelo paralelismo entre o trabalho do etnólogo e aquele dos grupos que ele estuda “a fim de tirar daí alguma ferramenta de conhecimento”. Fórmula feliz que desloca nossa atenção e nossa expectativa: não se trata mais de conhecer o outro, estritamente falando, mas de colocar em relação disjunções epistemológicas que nos abrirão ao conhecimento, não apenas dos “outros”, mas de nós mesmos.
Sem essa mediação, que aqui é do campo do literário, quem poderia se comover com a grande história de amor que une Félicité ao seu papagaio? Quando Lulu morre, um mundo se desmorona: “Ela chorou de tal maneira que a patroa lhe disse: ‘Pois, então, mande empalhar!’” (Flaubert, 2019, p. 45). Percebamos, nesse “Pois, então”, a fratura, o abismo incomensurável que as separa. Tem-se aí mais desprezo paternalista subentendido do que em longas formas explicativas do tipo: ora, sua bobinha, quem já se viu chorar tanto pela morte de um papagaio? Mas como você está inconsolável, minha pequena, é melhor agir, sair desse torpor, tomar uma iniciativa, mande empalhar! Para além da relação de classe, ergue-se um muro de incompreensão, saberes reciprocamente inadaptados se encaram. Aquilo que é natural, que é óbvio para a sra. Aubain, é inusual para Félicité. E vice-versa. Cada uma tem sua “perspectiva”. Porém, uma dentre elas, a mais insignificante ao olhar da outra, é também a mais atemporal, a que será capaz de atravessar os tempos e se reencarnar.
O Brasil será uma de suas terras de acolhida. Primeiramente pelo vínculo que a une a esse país, sem que ela saiba: seu papagaio. Lulu vem das Américas, indicação vaga de Flaubert a propósito daquilo que permanece, para nós franceses, o animal brasileiro por excelência. A “terra dos papagaios”… O pássaro tinha todos os motivos para seduzir Félicité: suas cores, sua presença espetacular e espalhafatosa; o fato de que sua origem lembrava-lhe Victor, seu sobrinho, desaparecido em peregrinações marítimas; além disso, o pássaro faz parte dos restos: o subprefeito livrou-se dele repassando-o à sra. Aubain que, não sabendo o que fazer com esse bicho, “irritada, deu-o de vez a Félicité” (Flaubert, 2019, p. 42). Por fim, entre os Larsonnière, seus antigos mestres, o papagaio era indissociável do negro que o carregava, ele também trazido da América. Lulu, não menos que o negro, é o igual de Félicité, pária como ela, tanto quanto é o seu avesso, desordenado, indiscreto. Ela que não sabe ler lhe ensinará a falar, para que ele possa dizer: “Belo rapaz! Às ordens, meu senhor! Eu te saúdo, Maria!”. Ou seja, seu próprio credo.
Mas eis que ele reaparece no Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum. Esse é o primeiro romance do escritor manauara, publicado em 1989. Bem antes de o autor se dedicar, em 2004, com Samuel Titan Jr., à tradução dos Três contos, o flerte é mais que transparente: também no Relato de um certo oriente o pássaro passa de mão em mão, e mesmo de sexo em sexo. Ele pertenceu à Hindié Conceição, que era próxima de Emilie, a matriarca, a quem Hindié o repassa; depois ele se mete numa transação entre Emilie e um comerciante de Marseille.
E aqui temos Laure de volta à França, em um percurso simétrico ao da história flaubertiana. A diferença é que o seu novo proprietário decide fazer dele um macho, que ele chama de Strabon, e expô-lo em uma gaiola terrível a todo tipo de vento, a fim de prepará-lo para o mistral! Laure, assim como Lulu, cantava a Ave Maria, antes de Emilie ironizar a possível redução “tricolor” do extravagante Strabon. Mas sua presença é mais do que anedótica em um romance no qual as falas reluzentes, os espelhamentos linguísticos e seus reversos afásicos são tão importantes: a moça muda Soraya Ângela, o silêncio no qual o patriarca da família se isola, Emilie que se lamenta de saudade de seu Líbano natal… Se voltasse para lá, ela pensa, ao menos estaria livre de gaguejar ou consultar os dicionários para dizer aquilo que lhe vem à mente. Ora, o papagaio maltratado acaba por também se fechar em um mutismo provisório, mimetizando e contribuindo para reforçar a sorte dos personagens de primeiro plano.
Onze anos depois, é ainda um pouco Félicité que reaparece em Dois irmãos sob os traços da doméstica ameríndia Domingas, papel ao mesmo tempo marginal e central, na medida em que absorve todos os conflitos da família na qual serve. Ela terá um filho de um dos gêmeos, os dois protagonistas em plena evidência dessa história de rivalidade quase fratricida em torno de um desejo mimético. Ora, após muitos tateios de escrita, ao fim de inúmeras versões preparatórias do romance, é esse filho ilegítimo que Milton Hatoum escolhe como narrador. É a partir de seu olhar subalterno, periférico, desse lugar tão brasileiro de agregado, misturando assimilação paternalista e relegação servil, que seguiremos as peripécias da intriga, e através delas meio século de história local e regional.
Um dos momentos mais sensíveis dessa aventura encontra-se no início do capítulo IV, por volta do primeiro quarto do texto: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo” (Hatoum, 2000, p. 73).
Nael se depara então com questionamentos sobre suas origens: “Anos depois desconfiei: um dos gêmeos era meu pai” (p. 73). No entanto, a passagem segue uma pista que não remete ao nome-do-pai, mas à trajetória da mãe. De repente, cansada de suas preocupações cotidianas, Domingas pede seu domingo de folga e junto ao filho empreende um retorno às suas origens. Essa será a única viagem que farão juntos fora de Manaus. Eles partem de madrugada, sobem um labirinto de riachos.
Durante a viagem, Domingas se alegrou, quase infantil, dona de sua voz e do seu corpo. Sentada na proa, o rosto ao sol, parecia livre e dizia para mim: “Olha as batuíras e as jaçanãs”, apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam sobre folhas de matupá. (p. 74)
Eles seguem em direção a seu lugar de nascimento, que ela gostaria de nunca ter deixado. Na infância, seu horizonte era ficar perto dos seus, preparar farinha de mandioca junto a outras mulheres. Mas a morte do pai a levou precipitadamente ao orfanato de Manaus, acompanhada por uma religiosa. Lá ficou por dois anos, submetida a um regime disciplinar implacável: doutrinar o corpo, recitar sem erros as orações decoradas, adquirir rudimentos de leitura e escrita, bem como limpar refeitórios e banheiros, costurar e bordar para as quermesses das missões. Noites silenciosas e escuras, as rondas de uma irmã sádica… As religiosas acabarão por “vendê-la” a Zana, a mãe dos gêmeos.
Todas as lembranças felizes e dolorosas de sua infância retornam na ocasião dessa escapada dominical. No entanto, ao se aproximarem da familiar Acajatuba, onde são anunciadas as festividades de um casamento, Domingas se acabrunha e decide voltar: ela tem medo de chegar muito tarde na casa de seus patrões de Manaus, teme não voltar nunca mais, enovelar-se em seu passado? Nael se questiona. A volta é atribulada, a chuva, as rajadas de vento; mãe e filho começam a vomitar no barco, como se somatizassem as perturbações do dia. O barco balança muito, os porcos e as galinhas ficam enlouquecidos e o episódio se conclui como prova iniciática, indicando uma fronteira, um ponto de não retorno para além do qual é perigoso se aventurar, os sinais catastróficos anunciam que eles estão prestes a adentrar em um outro mundo. A exata inversão do início da sequência, marcado pela alegria, pelo retorno à infância, pela reapropriação de seu destino, de sua voz, de seu corpo.
Como vimos, Dois irmãos é construído de forma explícita e recorrente em torno de um enigma: a identidade do pai de Nael. Todavia, essas poucas páginas entreabrem discretamente uma brecha: elas chamam a atenção de Nael para suas origens ameríndias, para a descoberta da Amazônia profunda, todo um universo que sua mãe precisou enterrar, entre escolha e imposição, e que, no entanto, repousa como brasas latentes sob as cinzas da “civilização”. A arte de Milton Hatoum destila, entre as evidências do texto, esses interstícios que reluzem. São eles, com suas referências intertextuais, que constituem a espessura, a textura e as nuances de romances como esse; neles se ativam os jogos de eco e de inversão nos quais o sentido prolifera; neles reside a fineza de tais textos.
Poderíamos dizer o mesmo da leitura social que vê no ameríndio um rejeitado dentre tantos outros, não menos do que “os pobres brasileiros inseridos na sociedade urbana, […] abandonados à miséria e à orfandade”(Olivieri-Godet, 2009, p. 110). É incontestável e também mais complexo, como mostra Cinzas do Norte com os personagens de Mundo e Alícia. O primeiro, nascido em uma família abastada, desfaz o vínculo sociológico que associa busca por origens a lugar de marginalidade. Ele odeia seu pai, herdeiro rico de uma família portuguesa e mestre da Vila Amazônia. Amigo dos militares, Jano se casou com Alícia, que foi criada por uma índia, Ozélia, mas sem certidão de nascimento (Hatoum, 2005, p. 108), exatamente como sua irmã Algisa. Ora, contrariando os determinismos sociais, cada uma adota uma estratégia de vida: Algisa foge da modernidade e se recolhe no mais profundo da floresta:
Algiza e Ozélia não se davam com ninguém, se entendiam por meio de gestos, e os novos moradores do bairro pensavam que elas eram surdas-mudas; sentadas na rua de terra, tomavam caiçuma de abacaxi na mesma cuia e depois iam, juntas, ver o rio e a cidade no fim da tarde; voltavam para casa ao anoitecer e se embrenhavam no castanhal para apanhar pedaços de madeira. Não iam aos arraiais da igreja nem às festas de São João (p. 162).
Alícia, ao contrário, vira as costas à vida selvagem e escolhe o conforto do casamento com Jano, permitindo-se também escapadelas com tio Ranulfo, seu verdadeiro amor, e com Arana, um artista que pouco a pouco cede às exigências do mercado e o verdadeiro pai de Mundo, conforme descobrimos na última página do livro. Não se trata aqui de analisar todos os alçapões do romance, à imagem desses nomes bifrontes, Mundo/Raimundo, Jano/Trajano – condensação de Janus e do nome imperial romano, com o qual o filho brinca proferindo repetidas vezes “Propriedade do imperador Trajano” (p. 79), para denunciar os valores obtusos e materialistas do pai –, mas apenas de sugerir as estratificações sutis que desafiam qualquer interpretação unívoca.
Encontra-se as mesmas nuances em torno do colorido mítico na origem de Órfãos do Eldorado. O projeto romanesco estava, de fato, destinado a fazer parte de uma coleção internacional lançada pelo editor escocês Canongate Books Ltd., dedicado justamente às reescritas de mitos. Porém Milton Hatoum dá, em seu livro, uma atenção a mais à dimensão ameríndia, indicando em uma nota final seu diálogo com a antropologia:
Embora esta ficção não se refira diretamente aos índios ou à cultura indígena, a leitura do ensaio A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro, foi importante para a compreensão dos tupinambás da Amazônia e para refletir sobre este romance (Hatoum, 2008, p. 107).
O universo ameríndio do romance é tematizado por algumas lendas, a da cidade encantada e do Eldorado, evidentemente, ou ainda a de Uiara, uma espécie de sereia das águas fluviais que atrai para si aqueles que se deixam seduzir. Parte das fontes pode ser buscada em Betty Mindlin, Candace Slater e Robin M. Wright (p. 107). O mundo ameríndio também se tematiza através dos personagens, principalmente os de Florita e Dinaura, construídos como num contraponto. A primeira cena do livro é marcante: uma Tapuia pintada com urucum mergulha no Amazonas gritando. Ela vai ao encontro de seu amante encantado no leito do rio? Decidiu morrer para se livrar dos sofrimentos deste mundo?
De repente a tapuia parou de falar e entrou na água. Os curiosos ficaram parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava com calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, aí alguém gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram até a ilha, mas não encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou. (p. 12)
Na margem do rio, o jovem narrador assiste ao afogamento, suicídio ou promessa de vida melhor, acompanhado por Florita, que traduz para ele as palavras da índia – atenuadas para proteger a criança, como depois saberemos (p. 90). De origem tupi, Florita vive no mundo dos “brancos”, onde serve e ao mesmo tempo preserva uma autonomia relativa. Recrutada pelo viúvo Amando Cordovil, ela cuida de seu filho Arminto, como substituta materna e como amiga. Espontaneamente, ela também o inicia à vida sexual. A relação de dependência se mostra, portanto, mais complexa do que uma simples submissão declarada ao patrão rico e pouco escrupuloso do Eldorado, “capaz de devorar o mundo” (p. 14). Florita é ligada a Arminto, ao ponto de ter ciúmes de Dinaura, uma dessas órfãs que veio da floresta e foi recebida pelas irmãs (como outrora se deu com Domingas), e por quem o jovem está perdidamente apaixonado.
Poderíamos ler aí mais uma história de amor, o apego obsessivo de Arminto, que, inconsolável depois do desaparecimento misterioso de Dinaura, não para de buscar seus rastros. Todavia, a personalidade volúvel, convencionalmente feminina (e simetricamente encarnada por Florita e Dinaura), também pode ser relacionada à instabilidade atribuída aos ameríndios pelo padre Antônio Vieira, em seu sermão do Espírito Santo de 1657, predicação revisitada pelo ensaio de Eduardo Viveiros de Castro (Castro, 2014). O jesuíta opõe as abjurações conquistadas a custo de muito esforço, porém duradouras, tais como as estátuas esculpidas no mármore, às conversões instantâneas, superficiais e efêmeras, comparadas às esculturas talhadas na murta. “A inconstância é uma constante da equação selvagem”, comenta o antropólogo (Castro, 2014, p. 365), retomando algumas páginas depois: “No modo de crer dos tupinambá, não havia lugar para a entrega total à palavra alheia” (p. 416). Nessa estrutura de pensamento, o outro não é “um espelho, mas um destino” (p. 422), de algum modo um devir de si próprio; não se coloca uma questão de identidade, mas de troca (p. 380), daí o papel central do exocanibalismo, cujo motor seria a perpetuação da vingança como afirmação da incompletude do ser e como busca imanente da imortalidade.
Voltando ao romance, o outro de nossas duas ameríndias não é um outro absoluto, transcendental, que exigiria que o ignorássemos, que o tratássemos como inimigo ou que nos convertêssemos a ele sem caminho de volta: ele é um ponto de passagem, ao contrário do que Dinaura é para Arminto. Isso nos permite entrever nessa história, e para além dela, na própria literatura, a possibilidade de uma outra perspectiva, diferente das categorias já estabelecidas pela “razão” – que apressadamente reduzem o incompreendido ao status de loucura, seja ela a de uma Félicité estúpida ou de uma Tapuia louca se afogando5.
Bem mais do que comungar com o leitor em torno de um olhar e um discurso compassivos sobre o ameríndio, a obra de Milton Hatoum nos convida a questionar nossa epistemologia, no âmbito da qual o mito seria apenas o avesso da história, na medida em que costuma ser associado ao falso ou à imaginação, quando muito a uma deformação do fato estabelecido no qual a história se ancora. Pensamos que é assim que se deve compreender a consideração do posfácio, que evoca a gênese do livro:
Mitos que fazem parte da cultura indo-europeia, mas também da ameríndia e de muitas outras. Porque os mitos, assim como as culturas, viajam e estão entrelaçados. Pertencem à história e à memória coletiva (Hatoum, 2008, p. 106).
Pertencem mostra bem que não se trata de opor mito à história, tampouco os mitos ameríndios ao pensamento ocidental. O mito é uma forma de pensamento, de filosofia, cuja razão de ser é a atribuição de sentido, à sua maneira. Daí esse entrelaçamento de vozes e lendas, que não são exatamente “crenças”, mas modos de semantizar e interpretar o mundo. Se há um lugar que perturba nossa racionalidade ocidental, talvez ele ainda seja a literatura, com sua arte de embaralhar dicotomias, de turvar o tempo linear, uma certa convenção do que se entende por “real” e a regra do terceiro excluído. É assim que, em sua habilidade de ilustração sociológica, ela também se mostra apta a dialogar com algo da filosofia ameríndia. Cabe à nossa leitura preservar essa virtude.
Referências
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BENJAMIN, Walter. Œuvres, tome III, Maurice de Gandillac, Rainer Rochlitz et Pierre Rusch (trad.), Paris, Gallimard, coll. « Folio-Essais », 2000.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem” in CASTRO, Eduardo Viveiros de, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2014.
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FLAUBERT, Gustave. Carta de 6 de fevereiro de 1876, ibid. : (acesso em 17.08.2018).
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary, trad. Ilana Heineberg. L&PM: Porto Alegre, 2011.
FLAUBERT, Gustave. Três contos, trad. Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. São Paulo: Ed. 34, 2019.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Ed. Graal: Rio de Janeiro, 2001.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte, São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 107.
OLIVIERI-GODET, Rita. “O ameríndio como personagem do Outro na literatura contemporânea: Órfãos do Eldorado e Nove noites”, in Revista brasileira de literatura comparada, n° 15, 2009, Abralic, p. 110. Online: http://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/231/235 (acesso em 16.08. 2018).
SAÏD, Edward. “O oportuno e o tardio”, in Edward Saïd, Estilo tardio, trad. Samuel Titan Jr. Companhia das letras: São Paulo, 2009.
Notas
- FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Ed. Graal: Rio de Janeiro, 2001, p. 13. ↩︎
- Carta de dezembro de 1875, in Correspondance électronique de Flaubert, Yvan Leclerc et Danielle Girard (éd.), 2017: (acesso em 17.08.2018). As traduções cuja referências não estão indicadas são de nossa autoria. ↩︎
- Carta de 6 de fevereiro de 1876, ibid. : (acesso em 17.08.2018). ↩︎
- Também poderíamos ver na jovem Félicité de Madame Bovary outra prefiguração do “Coração simples”. Mas ainda que ela tenha chegado um pouco rude para substituir Nastasie, no capítulo IX da primeira parte, a jovem doméstica ganhará confiança e importância ao longo do romance, uma trajetória nesse ponto muito diferente daquela do conto. ↩︎
- Ver também, sobre Dinaura: “Florita, sem conhecer a órfã, disse que o olhar dela era só feitiço: parecia uma dessas loucas que sonham em viver no fundo rio.” (Hatoum, 2008, p. 31).
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