“Darcy Ribeiro”, um ensaio do tradutor Gregory Rabassa

Resenha sobre a tradução para o inglês feita por Gregory Rabassa do livro "O povo brasileiro", de Darcy Ribeiro — "The Brazilian People", publicado pela University Press of Florida em 2000. Traduzido por Rogério Bettoni.
11/03/2025
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Na época em que lecionei com o antropólogo Charles Wagley na Universidade Columbia, muitas foram as vezes em que ele mencionou as experiências e os encontros que tivera com o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro. Assim, quando minha ex-aluna Elizabeth Lowe me pediu para traduzir um estudo do autor sobre a formação e o desenvolvimento do povo brasileiro, não demorei para quebrar meu juramento de que eu jamais voltaria a traduzir obras de não-ficção. Não lamento em nada ter feito isso, mas lamento o fato de Darcy ter morrido antes de ver minha tradução. Darcy já havia publicado dois romances excelentes, Maíra e O mulo, traduzidos por Elizabeth Lowe, e me motivava ainda mais saber que eu trabalharia em um texto de sociologia escrito por um romancista. Por conta disso, o livro não deveria ser ruim no que se referia à escrita. Além de romancista, Darcy também havia sido cientista social, então era inevitável que seu texto tivesse uma terminologia técnica. Como a maioria desses termos é de origem latina, não haveria problema em vertê-los para o inglês usando as mesmas raízes. Outros eram apenas traduções para o português do jargão anglo-americano, alguns dos quais eu conhecia, e o restante eu poderia traduzir facilmente de volta para o inglês.

Primeira edição de The Brazilian People, de Darcy Ribeiro, traduzido por Gregory Rabassa

Há uma quantidade considerável de termos locais quando ele descreve os diferentes tipos que compõem a população do Brasil. Ao traduzir romances, não me faltavam palavras para termos como “matuto” e “caipira” que denotassem o sentido de rústico, mas agora eu descobria que essas palavras nem sempre são gerais, tendem a descrever os habitantes de regiões específicas, e muitas vezes trazem consigo conotações raciais ou ocupacionais. Em muitos desses casos, eu me vi preservando os vocábulos em português depois de defini-los com uma ou duas palavras, de modo a manter quaisquer distinções ao longo do livro. O texto tinha uma variedade de material maior do que se poderia imaginar. Além do estudo em si, eu deveria traduzir citações de outros autores ou documentos de vários épocas. Em uma ocasião, tive de verter um poema de Gregório de Matos, o poeta barroco do período colonial, nascido na Bahia e conhecido popularmente como Boca do Inferno. Foi uma boa alternância, uma trégua de alguns gráficos de economia e sociologia cujos termos precisavam de tradução.

Neste e em outros livros, descobri que há alguns itens que ficam melhor se mantidos no original. Já falei uma vez sobre como lidei com o nome de ruas e avenidas, e de como podemos acrescentar a eles a palavra “praça”, em português, ou “plaza”, do espanhol, que, em inglês, significam simplesmente “square”. Se houver junto um nome próprio, como em Praça Tiradentes, eu deixo como está. “Tiradentes Square” passa um pouco dos limites e só se sustentaria em comparação ao absurdo que seria “Toothpuller Square”. Quando as palavras são substantivos comuns, no entanto, eu as traduzo. Duvido que muitos norte-americanos saibam o que significa praça, e plaza em inglês sugere outras coisas além de square, na maioria das vezes algo relacionado a shopping centers ou hotéis. A bebida nacional no Brasil é cachaça, um destilado de cana ou rum mais puro. Aqui fico dividido entre manter a palavra ou chamá-la de destilado de cana, embora haja mais americanos familiarizados com coisas do Brasil que talvez possam conhecer a cachaça como o principal ingrediente da caipirinha. Em muitos países de língua espanhola que cultivam cana-de-açúcar, essa bebida é chamada de aguardiente, que é o nome legítimo do conhaque em regiões de vinicultura. Não estamos falando de um Pedro Domecq, então, nesse caso, devo usar destilado de cana mesmo.

Uma outra questão é o dinheiro. Fico pensando em qual seria o efeito do Novo Testamento se convertêssemos shekels em dólares e centavos. Tanto no Brasil quanto em Portugal existe o termo “conto”, que transcende quaisquer mudanças de nomenclatura ou de valor no que se refere à moeda. Trata-se de uma designação não oficial que significa simplesmente um mil de qualquer que seja a moeda do momento. Vi o Brasil passar do cruzeiro para o novo cruzeiro, depois para o cruzado até o real. O conto cobria todas essas correções e mudanças de nome. Em Portugal costumava-se ter o escudo (que os soldados norte-americanos no Açores ouviam no plural como “skoots” e passaram a usar o termo), com o mesmo efeito do conto para representar mil. Será que “mil euros” funcionaria? Como vemos, já existe problema suficiente na nomenclatura antes até de tentarmos converter os valores para dólares e centavos norte-americanos. Além disso, um dólar não é mais um dólar.

Como os linotipistas de antigamente, aprendi muito da antropologia e da sociologia brasileiras traduzindo esse livro, e fiquei fascinado com as teorias de Darcy para explicar uma diferença tão grande de sonoridade entre o português brasileiro e o da terra-mãe. Foi também uma ótima oportunidade para recuperar um monte de informações que eu guardava na mente e que, com o passar do tempo, se incrustaram tanto que costuma ser difícil acessá-las. Até mesmo uma pessoa não muito informatizada como eu tem seus problemas de download.

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Em: Gregory Rabassa, If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents – A Memoir. Nova York: New Directions Book, 2005.


Gregory Rabassa é um dos mais proeminentes tradutores de literatura latino-americana para o inglês, trazendo a literatura da América Latina para leitores de língua inglesa em todo o mundo. Ele é mais conhecido como o tradutor do romance de Julio Cortázar, "Rayuela" (Hopscotch em inglês), pelo qual recebeu o Prêmio Nacional do Livro dos EUA de 1967, na categoria de tradução. Gregory Rabassa traduz desde 1966, ano em que Hopscotch foi publicado. Entre suas traduções mais reconhecidas estão "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez; "Paradiso", de José Lezama Lima; e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Joaquim Maria Machado de Assis. Outros autores cujas obras Rabassa traduziu incluem Miguel Ángel Asturias, Manuel Mujica Láinez, Clarice Lispector, Mario Vargas Llosa, Demetrio Aguilera-Malta, Dalton Trevisan, Jorge Amado, José Donoso, Luisa Valenzuela, Luis Rafael Sánchez e Osman Lins. Além de traduzir obras de autores considerados parte do cânone literário latino-americano, Rabassa também traduziu muitos trabalhos do chamado Boom Latino-Americano. Ao todo, ele traduziu mais de 40 obras de literatura latino-americana, tanto do espanhol quanto do português. Ele também trouxe a ficção de autores europeus como Juan Goytisolo e Juan Benet, da Espanha, e Mario de Carvalho e António Lobo Antunes, de Portugal, para um público de língua inglesa. Nascido em Yonkers, Nova York, ele cresceu em New Hampshire, onde frequentou o Dartmouth College. Em 1942, alistou-se no exército e serviu no Norte da África e na Itália com o Escritório de Serviços Estratégicos. Rabassa obteve seu doutorado pela Universidade de Columbia em 1954. Desde 1968, ele é Professor Distinto no Departamento de Línguas e Literaturas Hispânicas da Queens College e no Programa de Doutorado em Literaturas Hispânicas e Luso-Brasileiras da Graduate School and University Center, CUNY. Em 2001, o PEN American Center o homenageou com um prêmio pelo conjunto da obra (The Gregory Kolovakos Award) por suas contribuições à apreciação da literatura hispânica. Ele participa dos comitês editoriais consultivos de várias revistas literárias, incluindo Brasil/Brazil, Review: Latin American Literature and Arts e Hopscotch. Em 2006, ele recebeu o Prêmio PEN/Martha Albrand para a Arte da Memória, por seu livro "If This Be Treason: Translation and its Dyscontents".

Rogério Bettoni (SatBhagat), editor-geral, organizador e tradutor
Rogério criou a Palimpsestus com a vontade de fazer a diferença. Filósofo de formação e especializado em tradução, trabalha no ramo há vinte anos. Traduz filosofia, crítica e literatura moderna e contemporânea —de Judith Butler a Slavoj Žižek, de Agatha Christie a Ernest Hemingway. Pela Palimpsestus, traduziu e publicou Austin Osman Spare, Phil Hine, Pamela Colman Smith e Alan Chapman. Recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional em 2017 na categoria de melhor tradução com o livro "Jaqueta Branca", de Herman Melville. Também faz parte do Projeto Xaoz e dá aulas de kundalini yoga.