Na época em que lecionei com o antropólogo Charles Wagley na Universidade Columbia, muitas foram as vezes em que ele mencionou as experiências e os encontros que tivera com o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro. Assim, quando minha ex-aluna Elizabeth Lowe me pediu para traduzir um estudo do autor sobre a formação e o desenvolvimento do povo brasileiro, não demorei para quebrar meu juramento de que eu jamais voltaria a traduzir obras de não-ficção. Não lamento em nada ter feito isso, mas lamento o fato de Darcy ter morrido antes de ver minha tradução. Darcy já havia publicado dois romances excelentes, Maíra e O mulo, traduzidos por Elizabeth Lowe, e me motivava ainda mais saber que eu trabalharia em um texto de sociologia escrito por um romancista. Por conta disso, o livro não deveria ser ruim no que se referia à escrita. Além de romancista, Darcy também havia sido cientista social, então era inevitável que seu texto tivesse uma terminologia técnica. Como a maioria desses termos é de origem latina, não haveria problema em vertê-los para o inglês usando as mesmas raízes. Outros eram apenas traduções para o português do jargão anglo-americano, alguns dos quais eu conhecia, e o restante eu poderia traduzir facilmente de volta para o inglês.

Há uma quantidade considerável de termos locais quando ele descreve os diferentes tipos que compõem a população do Brasil. Ao traduzir romances, não me faltavam palavras para termos como “matuto” e “caipira” que denotassem o sentido de rústico, mas agora eu descobria que essas palavras nem sempre são gerais, tendem a descrever os habitantes de regiões específicas, e muitas vezes trazem consigo conotações raciais ou ocupacionais. Em muitos desses casos, eu me vi preservando os vocábulos em português depois de defini-los com uma ou duas palavras, de modo a manter quaisquer distinções ao longo do livro. O texto tinha uma variedade de material maior do que se poderia imaginar. Além do estudo em si, eu deveria traduzir citações de outros autores ou documentos de vários épocas. Em uma ocasião, tive de verter um poema de Gregório de Matos, o poeta barroco do período colonial, nascido na Bahia e conhecido popularmente como Boca do Inferno. Foi uma boa alternância, uma trégua de alguns gráficos de economia e sociologia cujos termos precisavam de tradução.
Neste e em outros livros, descobri que há alguns itens que ficam melhor se mantidos no original. Já falei uma vez sobre como lidei com o nome de ruas e avenidas, e de como podemos acrescentar a eles a palavra “praça”, em português, ou “plaza”, do espanhol, que, em inglês, significam simplesmente “square”. Se houver junto um nome próprio, como em Praça Tiradentes, eu deixo como está. “Tiradentes Square” passa um pouco dos limites e só se sustentaria em comparação ao absurdo que seria “Toothpuller Square”. Quando as palavras são substantivos comuns, no entanto, eu as traduzo. Duvido que muitos norte-americanos saibam o que significa praça, e plaza em inglês sugere outras coisas além de square, na maioria das vezes algo relacionado a shopping centers ou hotéis. A bebida nacional no Brasil é cachaça, um destilado de cana ou rum mais puro. Aqui fico dividido entre manter a palavra ou chamá-la de destilado de cana, embora haja mais americanos familiarizados com coisas do Brasil que talvez possam conhecer a cachaça como o principal ingrediente da caipirinha. Em muitos países de língua espanhola que cultivam cana-de-açúcar, essa bebida é chamada de aguardiente, que é o nome legítimo do conhaque em regiões de vinicultura. Não estamos falando de um Pedro Domecq, então, nesse caso, devo usar destilado de cana mesmo.
Uma outra questão é o dinheiro. Fico pensando em qual seria o efeito do Novo Testamento se convertêssemos shekels em dólares e centavos. Tanto no Brasil quanto em Portugal existe o termo “conto”, que transcende quaisquer mudanças de nomenclatura ou de valor no que se refere à moeda. Trata-se de uma designação não oficial que significa simplesmente um mil de qualquer que seja a moeda do momento. Vi o Brasil passar do cruzeiro para o novo cruzeiro, depois para o cruzado até o real. O conto cobria todas essas correções e mudanças de nome. Em Portugal costumava-se ter o escudo (que os soldados norte-americanos no Açores ouviam no plural como “skoots” e passaram a usar o termo), com o mesmo efeito do conto para representar mil. Será que “mil euros” funcionaria? Como vemos, já existe problema suficiente na nomenclatura antes até de tentarmos converter os valores para dólares e centavos norte-americanos. Além disso, um dólar não é mais um dólar.
Como os linotipistas de antigamente, aprendi muito da antropologia e da sociologia brasileiras traduzindo esse livro, e fiquei fascinado com as teorias de Darcy para explicar uma diferença tão grande de sonoridade entre o português brasileiro e o da terra-mãe. Foi também uma ótima oportunidade para recuperar um monte de informações que eu guardava na mente e que, com o passar do tempo, se incrustaram tanto que costuma ser difícil acessá-las. Até mesmo uma pessoa não muito informatizada como eu tem seus problemas de download.
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Em: Gregory Rabassa, If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents – A Memoir. Nova York: New Directions Book, 2005.