A expressão (queer) de si na Indonésia: três poemas de Norman Erikson Pasaribu traduzidos por Rogério Bettoni

23/06/2025
6 min de leitura

Nascido em 1990, em Jakarta, capital da Indonésia, Norman Erikson Pasaribu é um escritor de poesia, ficção e não ficção. Ele é considerado um dos escritores mais talentosos da Indonésia, e um dos temas centrais de sua escrita é a vida das pessoas queer em seu país. Seu primeiro livro de poesia, Sergius Mencari Bacchus (“Sérgio procura Baco”, sem tradução para o português) venceu a Jakarta Arts Council Poetry Competition em 2015 e foi traduzido para o inglês em 2019. A questão queer é tratada em seus poemas com a fluidez de quem encara a própria existência com grande orgulho e felicidade, sem se deixar macular ou diminuir pelas cicatrizes da homofobia.

Quando lemos o texto em inglês, a primeira coisa que salta aos olhos é o modo como a tradutora lida com a questão da neutralidade de gênero no uso dos pronomes, uma vez que, na língua indonésia, não existe essa distinção. Como apontado por ela na introdução de Sergius Seeks Bacchus, sua maior dificuldade foi não tentar identificar um gênero toda vez que, em sua leitura, ela se deparava com o pronome indonésio “dia”, e a opção que ela escolheu para traduzi-lo foi o “they”, hoje amplamente usado na língua inglesa para se referir ao gênero neutro. Meu desafio como tradutor não foi diferente, e quanto mais eu lia sobre o assunto tentando encontrar um raciocínio que guiasse minhas soluções, mais eu me via patinando num terreno em que não há certeza de nada, apenas o desejo de ir além das normas da nossa língua e trans-formá-la para que possamos representar a diversidade das identidades de gênero.

Minha tradução dos poemas de Pasaribu acompanham o ensaio da tradutora Tiffany Tsao, que serviu de introdução a Sergius Seeks Bacchus. Não fosse a leitura dessa introdução, eu facilmente leria alguns poemas pensando que o pronome “they” se referia à 3ª pessoa do plural, o que aponta, a meu ver, certa limitação nessa neutralidade quando o pronome não está sendo usado para retomar no discurso a referência a uma pessoa cujo gênero se desconhece, como em “I need to talk to the secretary, I’m pretty sure they will receive me”. Na tradução de um poema específico, acabei optando por usar “elu”, pronome que vem sendo usado de modo cada vez mais amplo em português, ganhando espaço na literatura e como preferência por pessoas de gênero fluido e não-binário. Dois textos foram importantes na minha decisão: a dissertação “A tradução de pronomes de gênero não-binário e neutro na legendagem: uma análise dos seriados Carmilla e One Day at a Time“, de Rafaela dos Santos Silva, e a matéria “Linguagem neutra, de ‘amigues’ e ‘todes’, enfim ganha a TV, os livros e a cultura pop”, de Pedro Martins, publicada na Folha de S. Paulo em 1º de outubro de 2021

TRADUÇÃO

POESIA

Laos dilanglangi do ahu, tarlungun-lungun…
(Nos lugares por onde passo, me coração chora…)
—de “Mardalan Ahu”, canção popular batak

Hora de entregar a carta de demissão
que há tanto você tenta escrever. Hora
de mostrar as faturas do cartão. Hora
de se revelar para sua esposa. Hora
de confessar que o que drenava sua energia
não eram as reuniões de trabalho.

Desde sempre sua folhagem é a solidão,
verdejante, frondosa, opulenta. Que bela árvore, pensam,
quase entregue ao zumbir das abelhas, apinhada de frutos.
Mas você definha,
tronco e galhos a murchar, parasitárias nos ramos
a corroer aos poucos seu coração.

Hora de parar com a mentira. Tudo
um mero espetáculo. E você um péssimo ator
sem roteiro, fazendo da vida dela o seu palco.
Quem está na plateia? Seus colegas – e assentos vazios.
Você sob os holofotes, sem filtro, sem adornos,
no encenar infinito de seus truques ruins.

No início você acordava no meio da noite
assombrado pelo que sua vida se tornara: um acúmulo de contas
em hotéis baratos e o ressaibo pungente de esperma na garganta.
Até escutar seu nome balbuciado no sono.
Então ela me ama mesmo.
E se trancava no banheiro para chorar.

É a manhã dourada, você e ela vão se aposentar,
dispersos como o capim a se espalhar no quintal
atrás de onde você cresceu correndo com os cães
à doce melodia dos salmos de sua mãe.
Do sofá você escuta o cantarolar de sua esposa na cozinha:
Laos dilanglangi do ahu, tarlungun-lungun

Você se vira.

Hora de dizer o que transcorreu no escuro.
Hora de fazer um gesto rumo ao que resta.


FELIZ IDEIA

Tive a feliz ideia de polir o vidro espelhado
e dizer oi para minha alma tristazulada. Olá, triste alma. Olá.
Foi minha ideia mais feliz.
— Mary Szybist

Ele teve a feliz ideia
de colocar um eu
encabeçando
um verso
sobre Deus
então Eu também
vou começar
colossal

capital

igual
fitando
finalmente
a face
de Une
que ele ama
enquanto segura-Lhe
a mão:

em silêncio
estudam-se
mutuamente.


NOTA DE RODAPÉ AOS 33

Eu estava prestes a cortar o pavio da lamparina
quando elu apareceu naquele burro típico.

Havia uma ilha à deriva naqueles olhos – uma ilha deserta,
nada que se atracasse à vista. Elu me pareceu
navegar só numa tempestade, tentando escapar
daquela ilha. Sem um cumprimento sequer,
me perguntou sobre o endereço rabiscado
no papel que trazia na mão.

Apontei
para a estrada reta
que termina no vale dos lobos,
onde vive aquela velha cobra –
na árvore da morte
envolta pelos ossos de dez mil ovelhas.

Entreguei-lhe a lamparina.
Fique com ela
para não se perder.
Elu anuiu
e foi seguindo pela estrada.

Elu jamais chegará ao destino
a montanha
onde você vive só,

esperando que eu volte para casa.

Veja só, foi preciso apontar um caminho errado
para que elu e eu
nos esbarrássemos de novo.

______________

Tradução: Rogério Bettoni

ORIGINAL

POETRY

Laos dilanglangi do ahu, tarlungun-lungun
(In the places I wander, my heart weeps…)
—from the Batak pop song, “Mardalan Ahu”

Time to turn the resignation letter
you’ve been indying to write for so long. Time
to reveal all the credit card statements. Time
to come clean to your wife. Time
to confess it was never the work meetings
that were sapping you of strength.

This whole time, loneliness has been your leafage,
green and shaggy and lush. What a fine tree, they all think,
on the verge of buzzing with bees and bursting with fruit.
But you’re withering,
your trunk and twigs diminishing, the benalu
in your branches eating away at your heart.

Time to stop living a lie. Everything is
nothing but a show. And you’re a bad actor
with no script, trying to make her life your stage.
Who’s watching? Your folks—and empty seats.
You stand in the spotlight, unfiltered, unpink,
performing an endless series of bad tricks.

Time to stop living a lie. Everything is
nothing but a show. And you’re a bad actor
with no script, trying to make her life your stage.
Who’s watching? Your folks—and empty seats.
You stand in the spotlight, unfiltered, unpink,
performing an endless series of bad tricks.

At first, you’d wake up in the middle of the night,
haunted by how your life had turned out: racking up bills
in cheap hotels and the unripe tang of cum in your throat.
Then you heard your name murmured in sleep.
So she really does love me.
You shut yourself in the bathroom and wept.

This morning, you and she reached your golden years at last,
straggling as the alang-alang sprouting in the yard
behind where you grew up, playing tag with pups
to the honey melody of your Inong’s psalms.
From the sofa you hear your wife crooning in the kitchen:
Laos dilanglangi do ahu, tarlungun-lungun

You turn.

Time to tell what has transpired in the dark.
Time to gesture toward what remains.


HAPPY IDEA

I had the happy idea to polish the reflecting glass and say
hello to my own blue soul. Hello, blue soul. Hello.
It was my happiest idea.
— Mary Szybist

He has the happy idea
to place an i
at the head
of a line
about God
so I too
will begin
tall

capital

equal

peering
for once
into the face
of the One
he loves
and holding Them
by the hand:

each quietly
studying
the other.


FOOTNOTE TO 33

I was just about to trim the wick of my lamp
when they showed up on that donkey of theirs.

An island drifted in those eyes—a dead one,
not a single dock in sight. They seemed to me
to be sailing solo in a storm, trying to flee
that island. Then without so much as a hello,
they asked me about the address scrawled
on the scrap of paper in their hand.

I pointed
down an unbending road
ending in the valley of wolves,
where that old snake lives—
in the tree of death
encircled by the bones of ten thousand sheep.

I thrust the lamp at them.
Take this
so you don’t get lost.
They nodded,
then started down the road.

They’ll never reach their destination
the mountain
where you live alone,

waiting for me to come home.

You see, I had to lead them astray
so they and I would
run into each other again.

Rogério Bettoni (SatBhagat), editor-geral, organizador e tradutor
Rogério criou a Palimpsestus com a vontade de fazer a diferença. Filósofo de formação e especializado em tradução, trabalha no ramo há vinte anos. Traduz filosofia, crítica e literatura moderna e contemporânea —de Judith Butler a Slavoj Žižek, de Agatha Christie a Ernest Hemingway. Pela Palimpsestus, traduziu e publicou Austin Osman Spare, Phil Hine, Pamela Colman Smith e Alan Chapman. Recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional em 2017 na categoria de melhor tradução com o livro "Jaqueta Branca", de Herman Melville. Também faz parte do Projeto Xaoz e dá aulas de kundalini yoga.

Norman Erikson Pasaribu é um poeta, tradutor, editor e escritor de contos indonésio, de etnia Toba Batak. Sua obra explora temas como identidade, sonhos e a experiência queer, frequentemente com um tom que combina humor e melancolia. Seus livros já foram traduzidos para diferentes línguas e lhe renderam algumas premiações e menções honrosas.